"Desconto? Bebeu? Isso aqui não é instituição filantrópica, cara!" |
Se você é um mestre ou jogador de RPG com certa experiência, é provável que já tenha testemunhado em sua mesa alguma situação parecida com as que descrevo abaixo:
Cena 1
Os PCs chegam à vila de Thistledale após um dia inteiro na estrada. O mestre planejou uma aventura rápida na vila, que começa assim que os personagens encontram com um determinado NPC na taverna Corvo Negro. Para destacar que os aldeões locais são supersticiosos, o mestre diz que réstias de alho e um símbolo sagrado estão pendurados na porta da taverna. Aí os jogadores ligam o alerta amarelo, sem motivo. Decidem procurar outra taverna, ou pior, deixar a vila.
Cena 2
Após uma extensa missão em território estrangeiro, os shadowrunners precisam consertar seu equipamento bélico e comprar mais munição. Ao procurarem um comerciante de armas no mercado negro, os jogadores acham o preço caro, e teimam em querer barganhar com o NPC para conseguirem um desconto absurdo, sem levar em conta que é o único vendedor local. E, pior, sem apresentar um argumento convincente. Mestre e jogadores perdem precioso tempo de jogo nessa lenga-lenga.
Cena 3
Em uma aventura investigativa, os jogadores precisam conversar com os frequentadores de uma taverna / cassino clandestino / casa noturna para obter informações, rumores e boatos. Para obter tanta informação quanto for possível, eles se separam, e cada um decide abordar um NPC. Com cada NPC que eles conversam perde-se tempo jogando conversa fora, fazendo apresentações, tentando apresentar argumentos, etc. Enquanto o mestre faz isso com cada um de seus jogadores individualmente, os outros ficam apenas olhando, sem ter o que fazer.
Cena 4
Os PCs são convocados pelo rei, duque, daimyo local ou ancião da tribo. Por qualquer motivo que seja, o jogador diz que seu personagem se recusa a fazer as mesuras e utilizar o título correto ("Vossa Excelência", etc.), causando um mal-estar na corte que pode acabar mal, com os personagens dos jogadores sendo expulsos ou até jogados na prisão. Ou pior.
Todas as cenas descritas acima podem parecer casos extremos, mas acontecem mais do que se imagina, e são exemplos perfeitos de algo que quero abordar nesta postagem: há horas em que não é necessário interpretar seu personagem. Principalmente quando a interpretação pode atrasar ou impedir o desenrolar da aventura, fazer com que todos percam tempo desnecessário de jogo, ou quando aquilo que o jogador considera a interpretação correta acaba sendo justamente o contrário. Em muitos casos, para evitar esses problemas, sou totalmente a favor de usar os dados ou, em casos extremos, vetar ações dos jogadores.
Pode parecer polêmico ("afinal é um jogo de interpretação de personagens!", alguém pode dizer), mas não é.
Veja as cenas acima. Na primeira cena, por pura paranóia dos jogadores, a aventura que o mestre planejou naquela vila pode ser comprometida. Isso poderia ser resolvido pelo mestre de modo bem simples: ao invés de descrever a taverna e então perguntar aos jogadores "o que vocês querem fazer agora?", ele descreve a taverna, diz que os personagens olharam o alho e o símbolo pendurado na porta com certa curiosidade ou estranheza, mas mesmo assim entraram na taverna por estarem cansados e famintos, e que os personagens sabem que isso é uma tradição comum de camponeses daquela região para afastar "fadas, espíritos malignos e mau-olhado".
Na segunda cena, os jogadores querem um desconto de qualquer maneira, ou mais dinheiro quando estão vendendo algo. Isso pode acontecer porque os PCs estão com pouco dinheiro, ou porque o personagem em questão é um mão-de-vaca e sovina. Seja por qual motivo for, é pura perda de tempo. Mestre e jogadores vão ficar nesse impasse, porque o jogador quer o desconto, e o mestre não acha apropriado. Já perdi muito tempo em aventuras com esse tipo de coisa, e hoje não faço mais isso.
Mas para não dar uma carteirada como mestre (algo que os mestres podem e devem fazer, ocasionalmente) quando o jogador começa com "tem um desconto / tem como pagar mais" eu simplesmente peço para os jogadores fazerem um teste de perícia apropriada (barganhar ou pechincha, o nome varia de um sistema para outro). Se seu personagem não tem essa perícia, nada feito. Ele não sabe pechinchar ou barganhar. E qualquer desconto ou aumento é determinado pelo resultado do teste.
Na terceira cena não há nada de errado. Pelo contrário, os jogadores estão corretos em tentar otimizar o tempo e obter a maior quantidade possível de informações que puderem. O problema é que essas interações sociais casuais tomam tempo, e são um saco em grupos com muitos jogadores. Enquanto o mestre está interpretando a conversa do PC X com o NPC Y, os outros jogadores estão sem fazer nada.
Uma solução fácil, neste caso, é preparar uma lista de rumores, boatos e informações, separados em verdadeiros e falsos / parcialmente verdadeiros. Cada PC faz um teste de Carisma (ou qualquer outra perícia social apropriada), e de acordo com o resultado o mestre lhe entrega um (ou mais de um) papelzinho com uma das informações obtidas.
Já o que está descrito na quarta cena é uma das poucas situações em que eu acho que o mestre pode - e deve! - vetar as ações dos personagens. Não apenas porque pode colocar o grupo em uma encrenca séria, mas porque não é como o PC reagiria àquela situação.
Veja, em mundos ou cenários onde a diferença de status entre nobreza e plebe é um fato reconhecido e parte integral da sociedade, um reles plebeu jamais faltaria com o devido respeito a um nobre, seja um "simples" lorde ou o monarca do reino. Da mesma forma, um membro de um clã ou de uma sociedade tribal jamais confrontaria seus anciãos em público - pelo menos não em circunstâncias normais. Para nós, que vivemos em tempos modernos, isso pode parecer estranho, mas não é. Pelo contrário, reconhecer o devido status da nobreza ou tratar um superior hierárquico da maneira apropriada é interpretar corretamente seu personagem.
Particularmente, eu prefiro deixar a interpretação e as interações entre PCs e NPCs para momentos realmente importantes para a aventura, que ajudam a desenvolver a história e a trama, como conversas com nobres ou sábios, reuniões sobre a missão com o Mr. Johnson, negociações com o líder de uma horda inimiga ou com um ser extra-planar poderoso, ou conversas - mesmo que triviais - com um determinado NPC que os PCs estão acompanhando ou escoltando. Para mim, interpretar e desenvolver toda e qualquer interação social irrelevante com NPCs genéricos é cansativo e enfadonho.
No fim, tudo é uma questão de gosto pessoal. Se o mestre e o grupo gostam de interpretar as interações com todos os taverneiros, mercadores e camponeses da aventura, sem problema!
Parabéns pela postagem. No final, o bom senso deve prevalecer. Lembro que no D&D, estabelecia que um item usado valia no máximo 60 % do original. A regra pedia para jogar 1D6x10 para saber quanto o NPC iria pagar. Para resumir, eu determinava sempre os 60 % e evitava longos minutos de negociação.
ResponderExcluirObrigado pelo comentário, Filipe. É uma boa opção também. Quando algum dos meus jogadores tenta barganhar, eu já estabeleço também de antemão o desconto máximo que aquele personagem vai dar. Quando tenho tempo, faço isso baseado no tamanho da cidade ou vila, se há outros artesãos ou comerciantes que vendem / compram os mesmos itens, etc. Se for sem planejamento, rolo 1d4.
ExcluirEu tenho uma solução melhor: toda aventura começa na porta da dungeon, com um breve Background, testes e compras pra preparação. Nada de ficar a toa pelo mundo.
ResponderExcluirNão diria que é melhor, pois é questão de gosto, e depende do que o mestre e seus jogadores buscam na aventura. Particularmente, eu e meus jogadores gostamos de aventuras no estilo "dungeon-crawling", mas digo por experiência que campanhas focadas exclusivamente nisso - ou campanhas monotemáticas, no geral - tendem a se tornar cansativas e monótonas depois de um tempo.
ExcluirAlém disso, a jornada é parte essencial das minhas aventuras, e é o que utilizo para apresentar o cenário aos jogadores de uma maneira muito mais interessante e natural do que dizer a eles para simplesmente lerem um determinado texto.