quinta-feira, 13 de outubro de 2022

As raças de Dungeons & Dragons não são as raças de Tolkien

Elfa, halfling e anão - arte de Larry Elmore

O título desta postagem pode, à primeira vista, parecer um mero caça-cliques visando suscitar uma polêmica vazia. "Como assim, as raças de AD&D não são as raças de Tolkien!?" Afinal, as raças do AD&D e do D&D clássico não são exatamente as mesmas criadas pelo professor? 

Se você quiser uma resposta sucinta, esta seria "Não e sim".

Mas se quiser uma resposta mais longa e elaborada peço que você, caro leitor, continue acompanhando o texto abaixo. A minha intenção não é incitar polêmicas, mas apenas expôr algumas idéias sobre este tema e iniciar um diálogo amigável.

AS RAÇAS NO LEGENDÁRIO DE TOLKIEN

Uma das maiores realizações de Tolkien em sua obra-prima de fantasia foi apresentar ao mundo raças hoje consagradas e conhecidas por muitos, como elfos, anões e hobbits, hoje presentes não apenas na literatura de fantasia como em diversos RPGs, desde Dungeons & Dragons até Shadowrun

Porém, uma vez que obras como O Senhor dos Anéis e O Silmarillion foram escritas com a intenção de criar um ciclo mitológico britânico nos mesmos moldes do Kalevala finlandês ou do Mabinogion galês, Tolkien tomou muito cuidado em apresentar suas diversas raças de maneira bem distinta, tanto entre si quanto em relação aos povos humanos da Terra-Média. 

Por exemplo, ainda que haja certa semelhança entre os Filhos de Ilúvatar (elfos e humanos), Tolkien foi bastante cuidadoso ao apresentar os elfos como um povo distinto dos humanos, com uma visão de mundo muito particular, e é justamente esta característica que dá aos quendi sua aura mítica - que também encontramos em povos fantásticos de outros ciclos mitológicos, como os aos sí celtas ou os alvar escandinavos. Em menor grau, essa distinção também existe com relação a anões e hobbits.

Outro aspecto importante é que o Professor aplicou às suas raças e povos um princípio essencial da filosofia grega conhecido como ética das virtudes. De maneira muito resumida, filósofos como Sócrates e Aristóteles mencionavam uma lista de virtudes morais e intelectuais que deveriam pautar a vida das pessoas. Essas virtudes deveriam ser exercidas de maneira equilibrada (conhecida como "média áurea"), pois seu excesso ou carência as transformaria em vícios de caráter. 

Por exemplo, a Generosidade é uma virtude moral. Em excesso ela leva à prodigalidade e ao desperdício, e em falta leva à avareza. A virtude da Magnanimidade, quando em excesso ou carência, respectivamente, leva à vaidade ou à fraqueza moral (conhecida como pusilanimidade). 

Em resumo, cada uma das raças e povos da Terra-Média era apresentada sob uma ótica mítica e completamente única, algo que seria muito difícil de reproduzir em um jogo.

RAÇAS "GENÉRICAS"

Que a obra de Tolkien foi uma enorme influência em Dungeons & Dragons parece bastante óbvio. Gary Gygax, porém, sempre tentou dirimir este fato devido ao processo movido contra a TSR em 1976 pela Saul Zaentz Company, através de sua subsidiária, Middle-Earth Enterprises, que detém até hoje os direitos para cinema, teatro, merchandising e jogos baseados nos livros O Hobbit e O Senhor dos Anéis. Devido ao processo, o D&D original teve de remover os termos hobbit, balrog, ent e warg dos jogos, substituindo-os por halfling, balor, treant e worg. Além destes elementos citados, outros como anões, orcs e goblins também foram incluídos por influência direta das obras de Tolkien.

E para quem quiser ler o relato de Gary Gygax acerca do processo acima, recomendo o livro Cheers, Gary!, um compilado de inúmeras perguntas e respostas feitas criador do D&D no fórum Enworld, reunidas e editadas por Paul Hughes e publicado pelo Gygax Memorial Fund.

Mas, voltando ao tema da postagem: como vimos acima, descrever uma raça fantástica através destes princípios míticos e filosóficos é algo fácil para um gênio como o Professor Tolkien, mas algo bastante problemático em uma mesa de jogo. Por isso que ainda que as raças de O Senhor dos Anéis estejam presentes nos RPGs, elas são apresentadas de maneira mais genérica - e isso não é um demérito, mas uma necessidade. 

Além de ser muito difícil reproduzir em uma mesa de RPG um elfo segundo Tolkien, muitos mestres e jogadores tinham suas próprias interpretações acerca destas raças, seja porque não queriam simplesmente emular o trabalho do Professor (algo quase impossível, como já disse acima), seja porquê as raças da Terra-Média não se encaixariam de maneira adequada em todas as campanhas. 

Um outro fator de peso é que ainda que Tolkien seja muito importante para o jogo, ele não era a única influência. Autores como Poul Anderson, Edgar Rice Burroughs, Robert E. Howard, Fritz Leiber e Jack Vance foram tão importantes na criação do D&D quanto o Professor. Basta olhar o famoso Apêndice N: Leituras inspiradoras e educativas, encontrado no Dungeon Master Guide de AD&D 1a Edição para ver isso.

A única maneira de utilizar as raças fantásticas de modo que cada Mestre pudesse aplicar suas próprias influências e adaptá-las a seus próprios cenários de campanha, portanto, seria apresentá-las de modo genérico. E esta é a abordagem utilizada em inúmeras edições e versões do jogo, tanto no D&D Clássico (seja B/X, BECMI ou Rules Cyclopedia) quanto no AD&D e também D&D 3.0/3.5. 

Foi justamente essa abordagem genérica que possibilitou, posteriormente, que os cenários oficiais de campanha publicados pela TSR apresentassem as raças clássicas do jogo de maneira particular e única, motivo pelo qual os elfos, anões e halflings de Forgotten Realms, Dragonlance, Mystara ou Dark Sun são tão distintos entre si e apresentem muitas características próprias. 

Claro, alguns produtos tentaram aproximar essas raças de suas raízes Tolkienianas como, por exemplo, o Complete Book of Elves, escrito por Colin McComb e publicado para a 2a edição em 1993. No livro, o autor apresenta regras opcionais para que os elfos sejam retratados de maneira mais singular e mitológica, como sua resistência a extremos de temperatura, a manifestação de sua grandeza interior e o reverie (ou devaneio), que busca justificar sua alta resistência às magias de sono e encantamento. Tais produtos, porém, foram esporádicos, e justamente por trazerem regras opcionais não eram utilizados em grande escala.

É notável, também, que as últimas duas edições de D&D vem se afastando cada vez mais de suas raízes literárias, não apenas das obras de Tokien, mas da literatura "pulp" e da Espada & Feitiçaria, tão presentes até o início da edição 3.0, em uma tentativa - muito malsucedida, em minha opinião - de criar uma mitologia própria e autorreferente.  

CONCLUSÃO

Enfim, espero ter esclarecidos meus argumentos acerca deste assunto, principalmente que não há intenção de causar polêmica. Além disso, pode ser que as edições posteriores do jogo tenham revisto essa abordagem, mas como não conheço praticamente nada das edições posteriores à 3.0, dada minha ojeriza pela WotC, não saberia dizer - e, levando-se em conta que a grande maioria dos designers atuais carecem não apenas de talento, mas também de noções mínimas de literatura clássica, mito e simbolismo, tenho cá minhas dúvidas.

E você, concorda? Discorda? Deixe seus comentários abaixo. 





 

 

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Forgotten Realms - minhas mudanças na campanha

 

Bloodstone Lands - arte de Larry Elmore

 

Muito tempo atrás eu fiz uma postagem dizendo como mudei minha opinião a respeito de Forgotten Realms após ler a caixa cinza, isto é, a primeira edição do cenário, publicada em 1987 e ainda bastante fiel à visão de seu criador, Ed Greenwood.

Porém, até então eu nunca havia mestrado nenhuma campanha em Faerûn - normalmente eu usava al-Qadim, Dragonlance ou um cenário de fantasia próprio. Quando voltei a mestrar AD&D em 2019, resolvi utilizar o cenário, que venho utilizando desde então. 

Minha campanha se passa em 1357 DR, no Ano do Príncípe (em Forgotten Realms todos os anos do calendário recebem uma alcunha ou epíteto), exatamente um ano antes da data canônica da famigerada "Guerra dos Avatares", e ainda que eu tente ser o mais fiel possível ao cenário publicado, eu fiz algumas modificações, que gostaria de compartilhar com vocês:

  • A Guerra dos Avatares nunca irá acontecer em minha campanha, uma vez que detesto esses eventos apocalípticos e prefiro campanha episódicas e mais regionais. 
  • Não existem "escolhidos dos deuses" na campanha, e os NPCs famosos, se existirem, serão menos poderosos do que suas versões oficiais e pouco conhecidos - ou completamente desconhecidos - além das fronteiras das regiões onde residem. Por exemplo, Elmister é apenas o "Sábio de Shadowdale", um mago certamente poderoso e influente na Terra dos Vales, mas longe de ser o mago supremo e imortal que todos conhecem.
  • O panteão de Faerûn sofreu algumas mudanças. Por exemplo, incluí Kelemvor e Cyric como deuses da morte e da trapaça / loucura, respectivamente, ainda que eles tenham surgido no cenário posteriormente. Bane, Bhaal e Myrkul ainda estão vivos e atormentando a vida das pessoas. Fiz de Selûne uma deusa maior, e Sune uma deusa intermediária. Além de reescrever o mito da criação e as relações entre os deuses para que eles funcionem como um verdadeiro panteão ao invés de um mero "catadão" de divindades. 
  • Os famosos grupos dominantes antagônicos do cenário são mais perigosos e menos cartunescos. Por outro lado, quase sempre atuarão em nível regional. 
  • Inclusive alguns destes grupos tiveram sua motivação alterada. Um exemplo é o Culto do Dragão, que em minha campanha é uma religião de mistério que cultua Tyamat e pretende trazê-la a Faerûn após libertá-la de sua prisão infernal. Outro exemplo são Os Harpistas, em minha campanha uma organização de espiões bem menor e menos influente, com pouca atuação fora de Cormyr e da Terra dos Vales. 
  • Eu tentei diminuir ao máximo as analogias de culturas e povos da Terra que se tornaram tão comuns nos suplementos da 2 edição. Por exemplo, Mulhorand é uma nação sucessora de um antigo e decadente império; há influências egípcias, mas mais sutis; os habitantes de Anauroch são inspirados nos aiel (da série de livros Wheel of Time, de Robert Jordan), e não beduínos; e Chessenta é uma confederação de cidades-estado, e não um análogo da Grécia Antiga. E por aí vai.